segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Notícia da morte de Patativa no Jornal Diario do Nordeste em 18/07/2002

O canto de Patativa do Assaré
Patativa do Assaré escrevia narrando a história de seu povo e o fazia com maestria

Esta semana na tristeza cearense da partida de um filho ilustre de suas letras, o Brasil fica mais pobre poeticamente. Patativa do Assaré já não está entre nós. Mais uma estrela brilha no cosmos da refinada literatura. Homem simples que nunca deixou seu rincão, escreveu laborial e genialmente a ponto dos estudiosos divergirem se era popular ou clássico. O certo é que era profundo e suave. Escrevia narrando a história de seu povo e o fazia com maestria.
Resta aos que não o conheceram - difícil não haverem ouvidos seus versos - lerem urgentemente a sua poesia.

"Minha poesia é a poesia do povo,
é a poesia social,
eu sou um poeta social,
um poeta que, analfabeto,
que nunca estudou, tudo meu é natural."

Quero um chefe brasileiro
que é firme e justiceiro
capaz de nos proteger,
que, do campo até a rua
o povo todo possua
o direito de viver" (1).

No dia 05 de março de 1909, a 18 quilômetros de Assaré, nasce Antônio Gonçalves da Silva, que viria a ser conhecido mais tarde por Patativa do Assaré. Com a morte precoce de seu pai - um agricultor pobre - e para amparar a mãe e os irmãos mais novos, intensificou muito sua lida na terra junto a seu irmão mais velho. Manteve-se nesta labuta, o trabalho no campo, até seus 70 anos. Estes fatos foram centrais na pessoa e na poesia de Patativa.
Patativa, no auge de seus 92 anos completos, apesar de não enxergar nem escutar quase nada e de andar só com o auxílio de muletas ou de alguém, continua um homem lúcido, conversador, contador de "causos", conforme se pode verificar no já citado, documentário produzido pela TV Cultura, Assaré, o sertão da poesia.
Sua escolaridade limitou-se a quatro meses, com uma professora da roça, muito atrasada. Vejamos seu depoimento: "Com a idade de doze anos, freqüentei uma escola, muito atrasada, na qual passei quatro meses, porém, sem interromper muito o trabalho de agricultor. Saí da escola lendo o segundo livro de Felisberto de Carvalho" - espécie de cartilha utilizada àquela época - "e daquele tempo pra cá não freqüentei mais escola nenhuma, porém, sempre lidando com as letras, quando dispunha de tempo para esse fim." (2)
Na idade de dezesseis anos persuadiu sua mãe a vender uma ovelha para comprar a primeira viola e ... ali começava uma nova fase de sua vida, fase essa que o levou a chegar onde ele se encontra hoje, um famoso poeta e cantador. Teve seu "canto amplificado" (3) por vozes como a do Rei do Baião, Luiz Gonzaga, que gravou a famosa e consagrada A Triste partida, seu conterrâneo Raimundo Fagner, que gravou por exemplo Vaca Estrela e Boi Fubá, dentre outros.
Apesar de ter tido uma formação escassa, sua "lida" com as letras, seu relacionamento com os livros, com a poesia de Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves, ou a prosa de Coelho Neto, manteve-se contínuo até o momento atual.. "Patativa é homem que sabe ler, de muitas leituras e informações sobre o que acontece no mundo (...). Basta dizer que, mesmo quando Patativa era violeiro e encantava os sertões com o som de sua viola e a beleza de seus versos de repente, já estudava o tratado de versificação de Guimarães Passos e Olavo Bilac e lia Os Lusíadas" (4).
Patativa perdeu um olho aos quatro anos de idade. Ao ser perguntado sobre a causa deste fato, respondeu: "Que diferença faz? O importante é que eu perdi um olho" (5). Mas, mesmo assim, com todo o espírito lúdico que é sua marca registrada, brinca com este fato, se comparando ao autor de Os lusíadas, Camões, que sofrera do mesmo mal:"Camões, foi autor dos Lusíadas viu, foi o maior poeta português que houve naquela época viu, e Camões tinha também um olho vazado, o olho direito como eu tenho, 'perdi' com quatro anos".
E conclui:

Nasci dentro da pobreza
sinto um prazer com isto
por ver que fui com certeza
colega de Jesus Cristo.
Perdi meu olho direito
ficando mesmo imperfeito
sem ver os velhos clarões,
mas logo me conformei
por saber que assim fiquei
parecido com Camões (6)

Patativa do Assaré é o que chamei anteriormente de um artesão da palavra. No dizer de Ariano Suassuna (7) "Patativa é certamente um dos grandes poetas populares brasileiros". De fato, ele pode ser encarado como um maestro de uma orquestra que tem como instrumentos, as palavras. Uma das coisas mais importantes para a carreira de Patativa é a questão da escrita, a publicação de seus poemas, alguns de seus repentes - que se não os tivesse escrito em seu caderninho, hoje não estariam aí fazendo sucesso.
Tudo isso o levou a chegar aonde chegou. Apareceu em grandes jornais como A Folha de São Paulo, na capa da Ilustrada (8), em revistas alternativas como a Palavra. Lançou mais de cinco livros, seis discos - tudo com grande sucesso. Possui ainda títulos como o de Doutor Honoris Causa das universidades Federal do Ceará, Estadual do Ceará e Federal de Sergipe, o prêmio Cultura Popular que recebeu das mãos do Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em 1995, dentre outras coisas.
Poder-se-ia-se dizer que Patativa é um poeta popular, mas nas palavras do jornalista e professor da UFC - Universidade Federal do Ceará, Gilmar de Carvalho: "O rótulo de poeta popular que tentaram lhe colar é pequeno demais para sua estatura e mascara um elitismo fora de lugar. Na verdade, ele é um clássico." (9)
Como se vê, Patativa lida com maestria tanto no uso de uma linguagem regional, quanto no uso do português padrão, acadêmico: "... como a insinuar que sua opção pela linguagem cabocla é fruto de deliberada vontade, por total integração com sua terra, sua gente, e não por desconhecimento dos códigos letrados." (10)
Como exemplo da linguagem regional (linguagem de matuto):

Poetas universitaro
poetas de cademia
De rico vocabularo
Cheio de mitologia,
Se a gente canta o que pensa
Eu quero pedir licença
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês. 11

E no português padrão (linguagem erudita):

Pela estrada da vida nós seguimos
Cada qual procurando melhorar
Tudo aquilo que vemos e que ouvimos
Desejamos, na mente, interpretar,
Pois nós todos na terra possuímos
O sagrado direito de pensar,
Neste mundo de Deus, olho e diviso
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso". (12)

Patativa, um homem totalmente integrado à terra em todos os sentidos, cultiva as tradições e os valores do sertão, conhecedor que é dos costumes e do modo de ser de seu povo.
Justamente por sofrer na carne as asperezas do sertão, a seca, a distância e as injustiças sociais, ele fez de sua poesia instrumento de combate político-social, sem perder o senso de humor, o espírito lúdico sempre presente na literatura de cordel.
Sua obra não se restringe à questão da seca, ao contrário, apresenta, como já foi dito, uma pluralidade de temas.
© COPYRIGHT 1998 Diário do Nordeste.

Nenhum comentário: